O descaso do aplicativo de mensagens Telegram com as solicitações de dados feitas pela Polícia Civil de São Paulo em investigações sobre o comércio criminoso de pornografia infantil tornou a plataforma uma verdadeira “terra de ninguém” para a ação de pedófilos.
A constatação foi feita pela Delegacia de Combate à Pedofilia, do Departamento de Homicídios e de Proteção à Pessoa (DHPP). Só neste ano, o órgão já recebeu 129 denúncias de venda de conteúdo pornográfico em grupos do Telegram.
São fotos e vídeos nos quais crianças e adolescentes aparecem em situações de abuso sexual cometido por pedófilos. No ano passado, foram 339 denúncias do tipo, totalizando 468 casos identificados pela delegacia do DHPP na plataforma de mensagens.
O chefe de investigações da 4º Delegacia de Combate à Pedofilia, Alexandre Scaramella, afirma que, em todos eles, a polícia notificou o Telegram a fornecer informações sobre os usuários da rede para ajudar a identificar os criminosos, mas não obteve colaboração satisfatória.
“Nós recebemos a denúncia, vemos nitidamente o nome do usuário do Telegram que está fazendo o comércio, passamos para a plataforma oficialmente a demanda, e ela acaba dando respostas genéricas. Diz que divulgar dados pessoais de seus usuários exige uma ordem judicial”, afirma Scaramella.
Diferentemente do WhatsApp, no Telegram não é possível visualizar o número de telefone de desconhecidos, o que dificulta a identificação das pessoas, principalmente nos grupos onde centenas de usuários se concentram para trocar mensagens.
Valendo-se da segurança do anonimato, os criminosos que comercializam pornografia infantil agem livremente, oferecendo fotos e vídeos cujos preços partem de R$ 4 e chegam a R$ 500.
Atuação nas redes
Além do Telegram, que é usado de forma aberta, disponível para qualquer usuário, há um submundo virtual hospedado na chamada deep web — zona online dificilmente detectada pelos buscadores tradicionais —, onde pessoas se aproveitam do anonimato para compartilharem e venderam registros de abusos sexuais de crianças.
Na deep web, segundo investigações da Delegacia de Combate à Pedofilia, os pedófilos se organizam em grupos, nos quais uma imagem de abuso sexual pode custar até US$ 100 (cerca de R$ 500) se for comprovado que ela é inédita ou pouco difundida entre o “grande público” de criminosos.
Os pedófilos monitoram quem entra nos grupos e pedem provas de que as pessoas são, de fato, interessadas no assunto. “O administrador costuma pedir imagens de abusos de crianças, preferencialmente feitas recentemente. Caso a pessoa não compartilhe, ela é tirada do grupo”, explica o chefe de investigações.
Conforme as imagens começam a circular pelas redes, elas vão perdendo valor de mercado. A partir daí, elas são vendidas em pacotes, armazenados remotamente nas chamadas “nuvens”. O conteúdo, nesses casos, é divulgado na internet aberta, principalmente no Telegram. Segundo a polícia, o aplicativo oferece aos criminosos a mesma segurança que a deep web.
“O Telegram, para nós das polícias, tanto a Civil como a Federal, é um dos maiores problemas em relação à venda de material pornográfico infantil”, afirma Alexandre Scaramella.
Adquirir, vender, possuir ou armazenar, por qualquer meio, fotografia, vídeo ou outra forma de registro que contenha cena de sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente é crime previsto pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). A pena vai de quatro a oito anos de prisão.
Traficante e usuário
No submundo da pedofilia há três tipos de criminosos identificados pela polícia. O primeiro deles é o abusador, que registra os crimes em fotos e vídeos e os compartilha em seguida, muitas vezes gratuitamente.
Outro é o traficante que tem acesso ao material produzido pelos abusadores e o comercializa tanto na deep web como nas plataformas abertas, principalmente pelo Telegram.
E há o pedófilo “passivo”, aquele que compra o material e o armazena em seu computador para satisfazer seu desejo sexual.
No mês passado, o DHPP conseguiu prender um traficante de pornografia infantil em Suzano, na Grande São Paulo. O comerciante Lucas Penques dos Santos, de 24 anos, baixava e armazenava vídeos e fotos de sexo envolvendo crianças e adolescentes, e os oferecia em pacotes virtuais, com preços entre R$ 4 e R$ 9.
As investigações, que duraram três meses, mostram que as negociações eram realizadas em salas de bate-papo exclusivas e por indicação de outros “usuários.”
Santos entrava em grupos de pornografia adulta e divulgava seu material de pedofilia. Algumas pessoas se interessavam e, com elas, o criminoso criava grupos nos quais a venda era feita livremente pelo Telegram.
A polícia já sabia do caso, mas não conseguia identificar o traficante por falta de colaboração da plataforma. Santos só foi pego porque passou a comercializar os pacotes de pornografia infantil pelo WhatsApp.
Um usuário se sentiu enojado com o material compartilhado e fez uma denúncia à polícia, divulgando o número de celular usado como chave Pix para as vendas. Com base nela, a polícia conseguiu identificar o comerciante e seu endereço.
A quebra do sigilo bancário de Santos obtida pelo DHPP mostra que Santos realizou, apenas em janeiro deste ano, 160 vendas de pacotes de pornografia infantil, arrecadando R$ 1.952. Em fevereiro, foram 122 vendas, que renderam R$ 1.392.
Ele foi preso em flagrante por crime de pedofilia no dia 24 de abril, mas foi solto na última semana por meio de um habeas corpus. O Metrópoles não conseguiu localizar a defesa dele até a publicação desta reportagem. O espaço segue aberto para manifestação.
Mais de 20 mil arquivos
Em outra ação policial, um comerciante de 45 anos foi preso (veja abaixo) após a Polícia Civil encontrar mais de 20 mil arquivos de pornografia infantil na casa dele, na zona leste da capital paulista, na manhã de quinta-feira (18/5). Ele foi solto no dia seguinte, após audiência de custódia.
Edson Shigueyoshi Murata afirmou aos policiais da 4ª Delegacia de Repressão à Pedofilia que começou a baixar arquivos de sexo explícito com crianças e adolescentes quando morava no Japão, para onde se mudou quando tinha 15 anos de idade. Ele retornou à capital paulista em 2011 e mantém um comércio de frutas e verduras há 9 anos.
Murata pagou uma fiança equivalente a um salário mínimo (R$ 1.320) e foi solto. Nenhum advogado dele foi localizado até a publicação desta reportagem. O espaço segue aberto para manifestação.
O que diz o Telegram
O Telegram afirmou, em nota enviada ao Metrópoles, que compartilha dados com a polícia desde que haja uma ordem judicial com “informações cruciais”.
“O Telegram processa todas as solicitações das autoridades policiais no Brasil e as cumpre dentro dos limites da lei, de sua política de privacidade e das limitações técnicas da plataforma”, diz o Telegram.
O aplicativo acrescentou que desde 2022 recebeu, “exatamente”, 72 solicitações do DHPP que “exigiriam uma ordem judicial para obter [informações] de acordo com as leis brasileiras.”
“Nenhuma das solicitações do DHPP estava baseada em uma ordem judicial e, além disso, muitas delas estavam sem informações cruciais necessárias para continuar, mesmo que uma ordem judicial fosse obtida. Enviamos uma resposta detalhada para cada uma das solicitações”, diz o Telegram, em nota.
O aplicativo disse ainda que desde 2022 já recebeu 305 ordens judiciais oriundas de São Paulo, sem especificar de onde eram e se as cumpriu.
Fonte: Metrópoles
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