fbpx

Remédio mais caro do mundo: como os governos vão fazer para bancar tratamentos milionários?

Início » Remédio mais caro do mundo: como os governos vão fazer para bancar tratamentos milionários?

Suhellen Oliveira da Silva estava grávida de seis meses quando soube que a criança que carregava tinha a mesma doença que deixara seu filho primogênito paralítico e quase mudo. Mas, desta vez, havia um tratamento disponível que poderia fazer uma diferença profunda. Este bebê poderia viver uma vida normal.

O problema era o preço: o tratamento custava o equivalente a US$ 1,7 milhão, e o sistema público de saúde no Brasil se recusava a pagar.

Então, Suhellen foi à Justiça – e ganhou. Um juiz decidiu que o governo deveria comprar a terapia para seu filho mais novo, Levi.

Hoje, Levi tem 2 anos, bate palmas e engatinha, coisas que seu irmão mais velho, Lorenzo, 10 anos, nunca conseguiu fazer.

O tratamento, chamado Zolgensma, uma infusão única, está entre os primeiros de uma nova classe de terapias genéticas de ponta que oferecem uma enorme promessa para pessoas com doenças fatais ou debilitantes – a preços extremamente caros. Seu fabricante, a empresa farmacêutica Novartis, negociou acordos com sistemas nacionais de saúde e seguradoras para obter a cobertura do medicamento em muitos dos países mais ricos.

Agora, com a desaceleração das vendas, a empresa está pressionando para obter ampla cobertura em países de renda média como o Brasil, onde os sistemas de saúde pública são frágeis e subfinanciados.

O Zolgensma, que trata uma doença genética rara conhecida como atrofia muscular espinhal, ou S.M.A. na sigla em inglês, foi durante algum tempo o tratamento mais caro do mundo. Tornou-se um teste observado de perto para saber se essas terapias podem obter ampla cobertura e quais podem ser as compensações.

A experiência do Brasil com o Zolgensma mostra os desafios que os preços exorbitantes dessas terapias representarão para governos e seguradoras com orçamentos limitados. Esses desafios estão prestes a se multiplicar nos próximos anos, à medida que mais tratamentos desse tipo ficarem disponíveis para mais pacientes.

Depois de mais de 100 ações judiciais bem-sucedidas de famílias obrigando o sistema público de saúde brasileiro a pagar pelo tratamento dos filhos, o governo anunciou em dezembro que passaria a cobrir o Zolgensma para bebês com os casos mais graves de S.M.A. ainda este ano.

O governo concordou em pagar o equivalente a cerca de US$ 1 milhão para cada tratamento – muito menos do que alguns outros países estão pagando, mas ainda assim uma quantia impressionante para o sobrecarregado sistema de saúde brasileiro.

Na Europa, um produto aprovado para um distúrbio neurológico mortal conhecido como leucodistrofia metacromática recebeu preços de tabela de até US$ 3,9 milhões. No ano passado, o sistema de saúde da Alemanha concordou em pagá-lo com desconto de US$ 2,6 milhões.

Nos Estados Unidos, a empresa de biotecnologia Bluebird Bio fixou no ano passado um preço de US$ 2,8 milhões quando obteve aprovações para tratar uma doença sanguínea hereditária chamada beta talassemia e US$ 3 milhões para tratar uma condição neurológica fatal conhecida como adrenoleucodistrofia cerebral. Quando os sistemas de saúde europeus se recusaram a pagar o que a Bluebird estava pedindo pelos produtos, a empresa os retirou do continente.

As duas primeiras terapias genéticas para a doença falciforme podem ser aprovadas ainda este ano. Embora existam mais de 6 milhões de pessoas com anemia falciforme em todo o mundo, a maioria das quais vive na África subsaariana, espera-se que os lançamentos iniciais se concentrem em dezenas de milhares de pacientes nos Estados Unidos e na Europa.

Preços recordes para terapias genéticas escaparam das críticas que se seguiram a outras decisões de preços da indústria. O sentimento reflete o quão poderosas são muitas das terapias genéticas – os médicos às vezes chegam a chamá-las de curas – e sua posição de destaque como tratamentos de dose única. Terapias assim têm apenas uma chance de ganhar dinheiro e, em alguns casos, podem substituir tratamentos crônicos que seriam administrados pelo resto da vida do paciente a um custo cumulativo muito maior.

Ainda assim, para os países de renda média, “se os benefícios dessas terapias forem imediatos em termos de saúde, mas as economias potenciais acontecerem no futuro, essa matemática pode não funcionar”, disse Rena Conti, economista de saúde da Questrom School of Business da Universidade de Boston.

Tay Salimullah, executivo da Novartis, disse que a empresa trabalha em estreita colaboração com governos e planos de saúde considerando a possibilidade de cobrir o Zolgensma, em alguns casos permitindo que eles distribuam seus pagamentos ao longo do tempo, como uma hipoteca, ou oferecendo um corte de preço se o tratamento não funcionar.

No Brasil, o acordo com a Novartis prevê que o governo parcele o pagamento de cada tratamento em cinco partes iguais ao longo de quatro anos. Se o paciente morrer, precisar ser entubado permanentemente ou for incapaz de manter certas funções motoras dois anos após receber o Zolgensma, o governo não será obrigado a fazer os pagamentos subsequentes.

“Esse garoto tem futuro”

Até seis anos atrás, não havia tratamentos aprovados para S.M.A., que afeta cerca de 1 em cada 10 mil recém-nascidos. Bebês com a forma mais grave da doença eram mandados para casa e suas famílias recebiam instruções para a se prepararem para a morte.

O Zolgensma e dois outros medicamentos aprovados desde 2016 abriram possibilidades antes inimagináveis para pacientes de S.M.A. “Digo para os pais continuarem colocando dinheiro na poupança da faculdade porque esse garoto tem futuro”, disse o Dr. Thomas Crawford, que trata pacientes de S.M.A. na Johns Hopkins Medicine.

O Zolgensma funciona substituindo o gene ausente ou disfuncional que causa S.M.A. por uma cópia funcional. Foi administrado em mais de 2.500 crianças e aprovado para uso em 46 países. A Novartis diz que mais de 35 desses países têm “vias de acesso” estabelecidas.

Estudos mostram que o Zolgensma pode impedir que bebês e crianças pequenas continuem a perder células nervosas que controlam o movimento muscular, evitando mais declínio, mas não consegue restaurar a função motora ou muscular que as crianças mais velhas já perderam.

Se o Zolgensma for administrado logo após o nascimento, as crianças podem não desenvolver deficiências significativas. As crianças que recebem a droga quando são um pouco mais velhas podem evitar o tubo de alimentação ou respiração e ser capazes de fazer alguns movimentos, em vez de viverem uma vida imóvel, como Lorenzo.

Na maioria dos casos, os pacientes conseguiram acessar o Zolgensma sem problemas nos Estados Unidos, Grã-Bretanha e Canadá, de acordo com médicos e grupos de pacientes desses países. Mas vários pais e mães americanos e seus advogados descreveram atrasos de meses, com planos de saúde falhando temporariamente, durante os quais as crianças começaram a mostrar sinais de S.M.A. enquanto esperavam pelo tratamento.

No Brasil, onde mais da metade da população depende do sistema público de saúde, as famílias que procuram o Zolgensma para seus filhos tentam arrecadar fundos por meio de sites de financiamento coletivo ou obtê-lo gratuitamente por meio de um ensaio clínico.

Mas, na maioria das vezes, recorrem aos tribunais. Até novembro, juízes obrigaram o sistema de saúde brasileiro a pagar 102 tratamentos com Zolgensma a um custo médio equivalente a US$ 1,6 milhão, segundo o Ministério da Saúde.

Um direito à saúde

Suhellen nunca tinha ouvido falar de S.M.A. quando Lorenzo foi diagnosticado aos 6 meses de idade, em 2013. Ele estava se desenvolvendo normalmente, mas seu progresso parou de repente. Os médicos disseram que não havia nada a ser feito.

Quando Suhellen soube em 2019 que estava inesperadamente grávida de Levi, os médicos disseram que ele poderia nunca ter deficiências causadas por S.M.A. se ela conseguisse o Zolgensma logo depois que ele nascesse.

A família sofria para sobreviver. Suhellen deixara o emprego de agente de viagens para lutar por atendimento domiciliar e terapias em tempo integral para Lorenzo; seu marido, Azen Balbino, tivera períodos de desemprego na recessão brasileira. Eles sabiam que precisariam contar com um processo que os brasileiros chamam de judicializacão, no qual efetivamente processam o governo federal invocando o direito constitucionalmente protegido à saúde para forçar o sistema público a pagar por um medicamento ou terapia que de outra forma o governo não forneceria.

Enquanto Suhellen ainda estava grávida, ela contou com a ajuda de Viviane Guimarães, advogada em sua cidade do Recife, no nordeste do Brasil, que concordou em aceitar seu caso. (Os advogados em tais batalhas judiciais normalmente não cobram das famílias que representam. Quando o governo perde um caso, pode ser condenado a pagar uma taxa ao advogado da família vencedora, mas esse pagamento é retido quando o governo apela de uma decisão, como aconteceu com o caso de Levi).

Quando Guimarães se apresentou perante o juiz para defender uma terapia de alto custo, ela argumentou que isso economizaria o dinheiro do governo com outros medicamentos que Levi precisaria tomar por toda a vida e com o custo de todos os cuidados de que ele precisaria sem o tratamento.

Lorenzo recebe três tipos de terapia todos os dias. Ele assiste a desenhos animados enquanto um fisioterapeuta faz uma visita duas vezes ao dia para massagear seu peito e sugar as secreções que de outra forma o sufocariam. Ele se comunica com a mãe por um sussurro ofegante, piscando ou mexendo a bochecha que ele ainda consegue mover. Enquanto isso, Levi escala as pernas inertes de Lorenzo, cantando junto com a televisão e fazendo pedidos imperiosos de coisas como picolés e biscoitos para a auxiliar de saúde, uma das três que se revezam para ficar ao lado da cama de Lorenzo 24 horas por dia.

Embora Levi não tenha atingido todos os marcos normais de desenvolvimento de uma criança de sua idade, ele é ágil e falante. Faz terapia ocupacional e fisioterapia todos os dias e continua progredindo no desenvolvimento físico.

Quando Guimarães ganhou uma sentença favorável na batalha judicial de Levi, o governo federal teve de separar o dinheiro para comprar o Zolgensma. Suhellen correu para o banco para fazer o dinheiro ser enviado por transferência bancária para uma conta da Novartis na Irlanda, liberando o envio do medicamento. Ela e o marido viajaram para São Paulo com Levi para ficar de prontidão em um hospital disposto a fazer a infusão. Ele recebeu o minúsculo frasco de 47,8 mililitros de Zolgensma aos 16 meses de idade.

Toda vez que vê os dois filhos juntos, Suhellen se lembra do impressionante poder do Zolgensma. Seus momentos mais felizes, ela disse, acontecem quando está com Levi e ele estende a mão, aperta suas bochechas para chamar sua atenção e exige, “Mamãe, Mamãe” como qualquer outra criança.

“Levi fala como uma criança que não tem S.M.A.”, disse ela.

Poucos recursos de sobra

Até agora, a Novartis arrecadou US$ 3,7 bilhões em receita com o Zolgensma, cobrando preços diferentes em lugares diferentes a depender de seus acordos com sistemas de saúde e seguradoras. A empresa disse que determina seus preços locais com base em fatores que incluem o produto interno bruto do país.

Alguns países negociaram preços mais baixos do que os US$ 2,1 milhões que capturaram as manchetes. A Coreia do Sul, por exemplo, não pagará mais do que o equivalente a US$ 1,5 milhão por paciente.

O tratamento é um dos mais vendidos da Novartis, mas não se tornou um grande sucesso em parte porque poucos pacientes necessitam dele. E as vendas começaram a desacelerar.

Países de renda média como o Brasil poderiam abrir as portas para muito mais pacientes.

A Novartis já conquistou cobertura para o Zolgensma na Rússia, no Egito e, mais recentemente, na Argentina, onde o governo anunciou este mês que concordou em pagar US$ 1,3 milhão por tratamento.

O presidente-executivo da Novartis, Dr. Vas Narasimhan, citou no ano passado três países de renda média – Brasil, Turquia e Índia – como os principais mercados de expansão para o Zolgensma. A empresa segue negociando o acesso ao tratamento em mais de 10 países, entre eles o Equador.

No Brasil, o governo concordou em cobrir o tratamento apenas para bebês com a forma mais grave de S.M.A. que podem respirar de forma independente durante pelo menos a maior parte do dia. Eles também devem ter menos de 6 meses de idade.

Sob o acordo com a Novartis, o governo brasileiro concordou em pagar pelo Zolgensma para não mais que 250 bebês nos próximos dois anos. Se a demanda for maior, a Novartis contribuirá com 40 tratamentos gratuitos. No máximo, assumindo um ritmo constante de tratamentos, o governo gastaria o equivalente a cerca de US$ 50 milhões para este primeiro grupo de crianças este ano e um total de US$ 200 milhões nos quatro anos seguintes.

Em comparação, um programa brasileiro conhecido como Farmácia Popular teve no ano passado um orçamento equivalente a cerca de US$ 380 milhões para atender mais de 21 milhões de pessoas, fornecendo acesso gratuito a medicamentos para tratar doenças como asma, diabetes e hipertensão. O governo alocou outros US$ 430 milhões no ano passado para seu programa de combate ao HIV e outras infecções sexualmente transmissíveis.

O sistema público de saúde atende mais da metade dos cerca de 216 milhões de habitantes do Brasil. Nas áreas rurais, os centros de saúde muitas vezes têm um único médico. Clínicas e hospitais em áreas de baixa renda carecem de suprimentos básicos e qualquer tecnologia mais sofisticada do que máquinas de raios-X.

“Estamos falando de um medicamento supercaro. Quando você vai para o hospital, a enfermeira não tem nem um par de luvas de látex”, disse Guimarães, advogada da família de Suhellen.

“Mas as pessoas vão ter de se acostumar com o debate”, acrescentou ela, “porque haverá muito mais terapias como esta”.

Fonte: Estadão

Leave a Reply

Your email address will not be published.