É simples na teoria, mas difícil na prática: beber alguns goles de água ao longo do dia pode parecer trivial, mas nem sempre é uma tarefa cumprida com sucesso. “Percebo que a população brasileira, em geral, não tem o hábito de cuidar da hidratação regular. Beber água deve fazer parte da rotina saudável de uma pessoa, assim como ter uma boa alimentação e praticar exercícios físicos”, diz Arnaldo Lichtenstein, clínico geral.
Os obstáculos são variados: seja pela correria do cotidiano ou pela distração nos momentos de lazer, seja pela escolha do tipo de bebida ou por questões sociais, já que 40% da população mundial não tem acesso seguro à água potável, podemos ter dificuldade em fornecer líquidos em volume suficiente para garantir a hidratação do corpo.
Uma pesquisa recente revelou que quem se mantém bem hidratado desenvolve menos doenças crônicas e vive mais tempo do que aqueles que não consomem líquidos suficientes. O estudo do National Institutes of Health, nos Estados Unidos, publicado em janeiro no periódico eBioMedicine, analisou os níveis séricos de sódio – que aumentam quando a ingestão de líquidos diminui – e outros indicadores de saúde de 11.255 adultos coletados em um período de 30 anos.
A pesquisa revelou que aqueles com níveis séricos de sódio no limite superior da faixa normal eram mais propensos a morrer mais cedo, desenvolver doenças crônicas e mostrar sinais de envelhecimento biológico avançado do que aqueles com níveis séricos de sódio nas faixas médias.
Todo o funcionamento do corpo depende da água, componente mais presente no nosso organismo, por isso uma boa hidratação é fundamental, explica a nutricionista Lara Natacci, coordenadora da comissão de comunicação da Sociedade Brasileira de Alimentação e Nutrição (Sban).
“Reações químicas e metabólicas, regulação da temperatura corporal e da pressão arterial, lubrificação de articulações, transporte de nutrientes e substâncias do nosso corpo, entre outros mecanismos vitais, dependem da água”, diz.
Um dos diversos reflexos de uma má hidratação do corpo é o intestino preso, já que o corpo absorve a água das fezes. “Duras e secas, as fezes ficam difíceis de serem eliminadas, o que resulta em prisão de ventre.”
Preciso tomar dois litros de água por dia?
A nutricionista Lara chama atenção para um estudo publicado na revista Science em novembro que derrubou um referencial amplamente disseminado: a meta diária de 2 litros (ou oito copos) de água por dia.
Segundo os pesquisadores envolvidos, esta meta não está respaldada em comprovações científicas. Eles apontam, no estudo, que o volume necessário de água deve levar em conta fatores como idade, peso, sexo, práticas de atividades físicas e condições ambientais locais – temperatura, altitude, umidade. “Não dá para ter uma recomendação genérica, é preciso considerar as individualidades de cada um, além do peso corporal”, reforça Lara.
Na falta de metas claras, então, como saber se meu corpo está bem hidratado? A dica de especialistas é observar a urina, que deve estar de uma cor bem clara, quase transparente, sem cheiro forte. Caso contrário, é sinal que o rim está trabalhando para concentrar a urina para evitar a desidratação do corpo. A sede é um sinal de alerta do corpo – por isso, é melhor se antecipar e se hidratar antes que ela apareça.
No corre-corre do seu trabalho como cabeleireira, Lia Morii, de 40 anos, tem se esforçado para beber água em maior volume e frequência. “Ganhei uma garrafa de uma cliente, que me aconselhou a me hidratar melhor para ter uma boa saúde. Eu evitava beber muita água por ter preguiça de ter que ir toda hora ao banheiro”, conta.
Lia conta que há 10 anos costumava ter muitas crises de infecção urinária e recebia orientações dos médicos para beber mais água, por isso está ciente da importância de se hidratar bem. “Pratico spin bike três vezes por semana e bebo muita água durante a aula”, diz.
Manter a urina mais diluída ao ingerir mais água ajuda a prevenir infecções urinárias e cálculos renais, problemas que costumam ser mais comuns no verão, quando está mais calor, afirma o urologista Wilmar Azal Neto, coordenador do Ambulatório de Endourologia e Urolitíase do Hospital das Clínicas da Universidade Estadual de Campinas (HC-Unicamp).
“Pessoas com boa saúde podem se prejudicar tomando pouca água, pois podem ter uma predisposição genética para formar cálculos. Se ingerir pouca água pode haver uma supersaturação dos elementos que resultam em formação de cálculo”, explica.
Quando o rim é saudável, ele costuma dar conta de preservar o líquido necessário para o corpo, mas há comportamentos e doenças que favorecem a desidratação e acabam levando mais pessoas aos pronto-socorros nesta época do ano, segundo o nefrologista Américo Cuvello, coordenador do Centro de Nefrologia e Diálise do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, em São Paulo.
Consumo exagerado de álcool, vômitos e diarréias causados por infecção alimentar, perda de água em práticas esportivas levam à desidratação, que quando grave pode levar à morte. Dor de cabeça, tontura, boca seca, fraqueza muscular e urina escura são sintomas de desidratação – se os sintomas forem bem leves, é preciso reidratar aos poucos; nos casos graves é fundamental procurar ajuda médica.
E não se engane: a cerveja e outras bebidas alcóolicas não ajudam a hidratar, pelo contrário. “As bebidas alcóolicas inibem a ação do hormônio antidiurético, o que leva a pessoa a urinar mais. Essa pessoa, que também vai transpirar no calor, pode perder líquido ao vomitar porque exagerou na bebida e chega ao pronto-socorro com quadro de desidratação. Esse tipo de caso é muito comum”, diz Cuvello. Por isso, a recomendação é sempre alternar o consumo de bebida alcoólica com alguns goles de água.
O que a prática de atividade física tem a ver com a hidratação do corpo?
Ao praticar atividades físicas, é preciso ter um maior cuidado com a hidratação, alerta Cuvello. “Em provas de corrida, por exemplo, é comum ter casos de desidratação”, diz.
Segundo ele, na maioria dos casos é suficiente consumir água para repor o líquido perdido. As bebidas isotônicas, que servem para repor os eletrólitos perdidos com o suor, são necessárias apenas para esforços mais prolongados – embora esse consumo não seja prejudicial à saúde.
O personal trainer Douglas Goulart, de 36 anos, orienta seus alunos a se hidratarem bem durante a prática de exercícios, geralmente após 30 minutos de treino. “Alguns alunos relatam uma dificuldade para se hidratar, mas explico que o desempenho deles depende disso”, diz.
No seu cotidiano, Goulart garante o consumo de 2 a 3 litros de água diários, sem contar outras bebidas que toma como leite, água com gás e chimarrão. Há 13 anos, resolveu cortar a cerveja. “A diferença para a saúde física e mental foi positiva.”
Os profissionais de saúde recomendam dar preferência à água se o objetivo é hidratar o corpo. Para aqueles que não conseguem virar muitos copos de água, há alguns macetes. “Incrementar a água com limão, folhas de hortelã, morango ou outro ingrediente natural é válido para estimular o consumo de água, de preferência sem adição de açúcar”, recomenda o nutrólogo e endocrinologista Durval Ribas Filho, presidente da Associação Brasileira de Nutrologia (Abran).
Essa é a estratégia da produtora de conteúdo Soraia Lopes, de 47 anos, que desde criança teve dificuldade de beber água. “Me sentia estufada, nunca senti prazer”, conta. Há 6 anos, ela descobriu as receitas de “água saborizada”. “Dentro de uma jarra, incluo folhas como hortelã e as frutas que tenho em casa, além de especiarias como canela e cravo”, diz ela, que prepara a bebida diariamente.
Especialista em produções de “mesa posta”, Soraia diz que a água saborizada (também chamada de “flavorizada”) sempre faz sucesso entre os convidados. “A apresentação é bonita, enche os olhos. Atrai as pessoas, especialmente se incluir uma fruta colorida, como a pitaya vermelha”, diz.
A beleza da água saborizada também agrada os idosos do Lar Sant’Ana, afirma a nutricionista Maureen Lemos Gregson, coordenadora de Nutrição do residencial onde vivem 84 idosos.
“Eles dizem que odeiam tomar água, por isso temos truques para mantê-los hidratados”, diz. Há 25 anos, a nutricionista prepara cardápios para idosos – e sabe que o envelhecimento tem reflexos no paladar, que fica menos sensível, e na percepção de sede. Nos dias mais quentes, Maureen oferece frutas ricas em água como melancia, uva e melão, além de sorvete, gelatina, sopas e bebidas variadas como água de coco, sucos e chás.
“Eles não conseguem tomar volumes grandes de líquido uma só vez, por isso a cada duas horas recebem um copo de 200 ml. As cuidadoras correm atrás dos idosos para oferecer líquido enquanto eles estão em atividades como bingo e cinema”, conta.
Hidratação: diferença pela idade
Crianças e idosos precisam de ajuda na hidratação, alerta o clínico-geral Arnaldo Lichtenstein. “Após os 60 anos, a pessoa tem menos percepção de sede”, justifica.
Segundo o médico, idosos e crianças que apresentam irritabilidade podem estar assim por conta dos sintomas da desidratação – por isso é preciso garantir a oferta e ingestão de líquidos, especialmente nos dias de calor.
No seu dia a dia como clínico geral, Lichtenstein confessa que apela para o “ponto fraco” do paciente para convencê-lo a se hidratar melhor. “Se percebo que ele é vaidoso, por exemplo, explico que a pele dele vai ficar enrugada. Para aqueles que já estão doentes, argumento que eles podem agravar o quadro se ficarem desidratados”, conta.
A hidratação no início da vida exige cuidados específicos. Até os 6 meses de vida, o leite materno é o suficiente para hidratar o seu organismo, afirma a pediatra Fernanda Luísa Ceragioli, membro do Departamento Científico de Nutrologia da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP).
Segundo ela, as fórmulas infantis são preparadas para suprir as necessidades hidratação da faixa etária, mas é preciso fazer ponderações de acordo com as condições ambientais. Se está calor, é preciso ofertar água a mais.
“Os bebês de menos de 6 meses que tomam fórmula podem receber água para que possam ir se acostumando ao hábito, que deve ser cultivado desde cedo”, diz a pediatra. Com a introdução alimentar, após os 6 meses, a água deve estar na rotina de todos os bebês. “A uma criança menor de 1 ano, recomenda-se a ingestão de cerca de 800 ml de água por dia – ou mais se estiver em lugar quente.”
O perigo da desidratação é maior quando as crianças perdem muito líquido por conta de vômitos e diarréias causados por processos virais, diz Fernanda. “A chance de desidratar é grande. Nessas horas é preciso oferecer soluções com sódio e potássio ou soro caseiro e procurar a orientação de um médico.”
A pediatra alerta para a “cultura do suco”, que valoriza a bebida quando na verdade ela deve ser consumida com moderação pelas crianças. Fernanda explica que, até completar seu primeiro ano de vida, a criança não deve receber sucos, pois seu corpo ainda não está preparado. Depois disso, o consumo deve se limitar a 120 a 150 ml por dia. “O suco contém muita frutose, que em excesso pode favorecer a obesidade e evoluir para outros problemas como esteatose”, justifica. A recomendação de Fernanda para as crianças acostumadas ao suco – mesmo que seja natural – é ir diluindo aos poucos, até que se acostumem a beber água.
Mas não entenda mal: isso não significa que as frutas sejam vilãs da saúde e da hidratação. Inclusive, a alimentação também importa para a hidratação: vegetais e frutas contém muita água, que o organismo também absorve, explica o nutrólogo Ribas Filho, da Abran. “Inclua na dieta alimentos de baixa densidade energética e alto teor de água como pera, chuchu”, indica.
Os alimentos ultraprocessados, que passam por muitas alterações no processo industrial, como salgadinhos de pacote, biscoitos e macarrão instantâneo, geralmente são pobres em água.
“Os produtos ultraprocessados são feitos para ter longa durabilidade e a água leva a processos mais rápidos de degradação dos alimentos. Assim, a presença dela não é desejada em muitos deles. E, ao desidratar os produtos, esses ficam mais leves, tornando-se mais fáceis de serem transportados além de ocuparem menor volume para transporte”, explica Larissa Baraldi, nutricionista e pesquisadora do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da Universidade de São Paulo (Nupens/USP).
Ela liderou o estudo “Associações entre o consumo de alimentos ultraprocessados e a ingestão total de água na população dos EUA”, que concluiu que, quanto maior o consumo de ultraprocessados, menor é o consumo diário total de água. “Essa redução no consumo pode estar associada a mudanças no próprio padrão alimentar, em que indivíduos habituados a alimentos ultraprocessados não tenham hábito de beber água pura e alimentos fontes de água, consumindo no lugar bebidas adoçadas, por exemplo”, diz.
Larissa explica porque os refrigerantes não são boas opções para hidratar o corpo: “Bebidas adoçadas, seja com açúcar ou com adoçantes artificiais, aumentam o risco de obesidade. As com açúcar são ricas em calorias líquidas que ‘enganam’ nosso organismo, pois a percepção de saciedade não é alterada e a pessoa consome a mesma quantidade de calorias sólidas mesmo tendo já consumido calorias líquidas.” Segundo a pesquisadora, o consumo regular de produtos ultraprocessados, inclusive as bebidas, está associado a diversas doenças como diabetes, câncer e doenças cardiovasculares.
Aos que estão com dificuldade de se hidratar regularmente, a pesquisadora recomenda construir o hábito. “Organize e pense o seu dia a dia até que a hidratação esteja incorporada naturalmente na sua rotina. Lembre-se que a água é um item fundamental de uma alimentação saudável e equilibrada.”
Hidrate-se com prazer
Veja as dicas dos profissionais da área de saúde para cuidar bem da hidratação do seu corpo.
- Se antecipe à sede: sede é um aviso do corpo que sinaliza a desidratação, mesmo que seja leve. Por isso, não espere sentir sede para beber água. E, caso você perceba que sua sede é excessiva, procure um médico, já que este pode ser um sintoma de alguma doença como diabetes.
- Carregue a garrafa: levar uma garrafa, squeeze ou outro recipiente com água para onde quer que você vá é um hábito que pode ajudar na hidratação.
- Observe a urina: após urinar, se a urina estiver clara e sem odor, beba um copo. Se estiver amarelada, mais escura, beba dois. Urina muito escura exige atenção, neste caso procure um médico.
- Incremente: a água é a melhor opção para hidratar o corpo. Se para você é difícil ingerir água pura, adicione algum sabor à água com uso de folhas de hortelã ou cidreira, especiarias como canela ou pedaços de frutas. Sucos são naturais e saudáveis, mas é melhor não consumi-los em grande volume. Refrigerantes podem até hidratar, mas não são bebidas saudáveis.
- Atenção aos diuréticos: bebidas ricas em cafeína e bebidas alcóolicas podem desidratar o corpo. Consuma com moderação e busque compensar a água perdida, bebendo um copo de água entre os drinks. Se você consome remédios que favorecem a diurese, siga as recomendações de hidratação do seu médico.
- Na malhação e na folia: em momentos de muita atividade física, é preciso garantir a hidratação, pois seu corpo está transpirando muito.
- Ressaca: a desidratação causada por abusos de bebida alcóolica é uma das responsáveis pelo mal-estar. Beba muito líquido para ajudar na recuperação.
- Fracione: se você se sente mal ao tomar um copão de água, talvez seja melhor beber volumes menores com frequência maior.
- Coma água: inclua na dieta muitas verduras, legumes e frutas. Alimentos in natura geralmente são ricos em água.
- Controle outros fatores: no calor, procure usar roupas leves, usar chapéu e ficar à sombra. Ventiladores e ar condicionado são refrescantes, mas o ar seco leva a uma maior transpiração e exige um consumo maior de líquidos para repor o que foi perdido.
- Atenção a bebês, crianças e idosos: eles necessitam de atenção especial. Muitas vezes será preciso lançar mão de artifícios para convencê-los a beber água e evitar desidratação. Em caso de vômitos ou diarreias, é preciso repor a água perdida com urgência, pois eles desidratam mais facilmente.
Fonte: Estadão
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